quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A crônica do fracasso anunciado


Há quem nos diga sem receio que uma boa crônica deve ter como principal virtude, primar o novo ou execrar o óbvio, mas penso que em se tratando da realidade, as aparências têm nos mostrado que a exigência da profissão do cronista é estafante demais. Porque se por um lado, o cronista geralmente se entrega encantado ao prazer da escrita ao reviver os lampejos de um cotidiano carente de emoções, por outro lado, quando se reconhece que o fato é nojento, sente-se ele um pobre sofredor como Cristo martirizado e indefeso, tal qual a história que ocorreu um dia desses nas dependências de um restaurante qualquer e que me foi contada pelo meu amigo-irmão, Nômade.
O caso se sucedeu num desses lugares-comuns, conhecido como Cai Duro, uma alcunha nada carinhosa, embora condizente com o local, famoso não apenas por servir comidas a preço de custo, mas, onde até os ratos param para “conversar” conosco. Porém, do mesmo modo que o mundo se encontra, o dito refeitório era tão sem graça e desprovido de novidade que o seu aspecto assumia o tom de uma monotonia de dar sono ao mais agitado e incansável indivíduo, assustando, assim, o grande Nômade que atentamente na fila, observava a tudo e a todos, sem deixar escapar certos detalhes que achei por bem omitir. Num determinado instante, uma jovem muito bela, discretamente levantou-se de seu assento próximo a fila, saiu apontando o dedo para a sua comida e bradou sem empolgação para um escândalo:
- Olha aqui, olha aqui, uma barata!
Isto mesmo amigos, não quero fazer média com ninguém, mas havia um inseto ortóptero onívoro no prato de comida da jovem. No entanto, engana-se inocentemente quem sonha em acreditar que o fato de uma singela barata ter feito um pouso em lugar errado, possa ter causado pânico generalizado. De fato foi como se nada tivesse acontecido e a maior prova inconteste disso tudo é que quase todos os presentes comeram na mais cândida paz, sem problema algum em exercitar o seu canibalismo inflexível.
Caros amigos, quando o estomago estrondeia tão ferozmente que assusta o nojo, no fim deste jogo, a gente descobre que não há nada mais poderosa que a fome e é justamente aí que o frango “paga o pato”. Até o herói desta história, Nômade, comeu sossegadamente a sua comida, sem o menor temor de que um díptero esquizóforo (a mosca doméstica) pousasse em seu prato ou ainda crente de que posteriormente não colocaria tudo para fora literalmente pelas duas vias (se entendem o que digo).
Após o almoço longamente degustado (lembramos a todos que a mastigação é um rito sagrado como uma religião: cada um tem a sua), o nosso herói tratou de ir ao lavatório, cuidar de questões importantíssimas para qualquer indivíduo e que não vem ao caso mencionar. Logo após satisfazer todas as necessidades, eis que na saída do restaurante, ele depara-se frontalmente com a vítima de tão infame e constrangedora situação. Sem vergonha alguma, ele foi chegando junto e rapidamente se pôs a perguntar:
- Oi minha querida, percebi que no refeitório deste restaurante você encontrou uma barata em sua comida. Isto é verdade mesmo?
Aparentemente a reação dela foi positiva (pelo menos para ele) porque ela não teve pudor em responder:
- Oi, é quase verdade, pois o que eu encontrei foi a cabeça de uma barata com umas anteninhas e quando vi aqueles “olhos” voltados para mim, perdi a fome.
Quando se trata de analisar um caso como esse, o nosso herói costuma apelar para os seus lances de fina ironia:
- Engraçado como esse pessoal nunca coloca tempero na comida, mas quando aparece algo temperado, você descobre que uma barata deixou a comida “saborosa”.
E ela concordou em gênero e número, pois foi enfática ao afirmar:
- É isto mesmo! Pior para quem comeu muito, porque a barata se dissolveu e o sabor ficou bem peculiar.
Logo após o ilustre amigo se despedir da vítima desta histórica e antológica agressão alimentar, veio afoitamente a mim, contar o ocorrido que ora narro a fim de extrair dele algum questionamento. O primeiro que me veio à mente foi doloroso como soco de lutador de boxe na boca do estômago: em quem confiar se tudo por nós é desfeito num olhar? Sinceramente sinto que acabo de cair num poço escuro, seco e profundo. O olhar em questão é sempre o da vítima desta desgraça. A minha observação sempre será de uma testemunha distante, visto o fato ter sido contado.
Neste caso, a quem humildemente devo recorrer? O nosso herói, perdido, de repente brada a pleno pulmão:
- Acudam-nos vigilância sanitária!
Ele está certo. Pediremos forçosamente que os refeitórios de restaurantes de todas as categorias sejam rigorosamente fiscalizados e avaliados, porque senão perderei a minha bendita paciência toda a vez que adentrar no recinto desses locais a fim de exercitar meu canibalismo sagrado e uma reles baratinha resolver fazer o seu descanso justo no meu prato de comida. Se este insignificante inseto é capaz de um estrago desta magnitude, imagine o tamanho da minha preocupação em cear nesses locais. Pior ainda se os nossos doutores em nutrição resolverem adotar a cultura dos chineses e afirmar cientificamente que a barata também é nutritiva. Xi! Já deu para perceber que este fracasso está definitivamente desenhado.

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