segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A procura do ser do homem II


As meras ciências de fato criam meros homens de fato. A revolução do comportamento geral do público foi inevitável, especialmente depois da guerra, e sabemos que na geração mais recente ela se transformou até em um estado de espírito hostil. Na miséria de nossa vida –ouve-se dizer– esta ciência nada tem a dizer-nos. Ela exclui de princípio justamente os problemas que são os mais perturbadores do homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se entregue ao sabor do destino: os problemas do sentido e do não-sentido [absurdo] da existência humana em seu conjunto… [Edmund Husserl, em A crise da ciência européia e a fenomenologia transcendental, v. 1]

A temática deste texto não obstante implicar uma complexidade natural quando se trata de compreender o pensamento e o método de um autor como Edmund Husserl, implica também a dificuldade de entender o que é o homem e em que sentido é possível conhece-lo, compreende-lo, vivenciá-lo. Sabemos que Husserl, fundador do método fenomenológico nos fornece muitas questões sobre o problema do homem no mundo ou dito numa linguagem formal, do problema do sujeito e sua relação com a existência.

No entanto, apesar de tudo, não temos a solução do problema. De fato, o homem é um ser que continua em permanente estado de buscar a si mesmo, pois não reside nele, uma unidade sintética capaz de defini-lo como um fundamento que determina suas razões, sua natureza e suas ações.

A fenomenologia como método de pesquisa surge com uma forte crítica a modernidade e a ciência quando esta percebeu o sintoma de desorientação e perda de sentido. Então era preciso encontrar uma solução para esta situação. Os contemporâneos acreditam que é impossível pensar a vida humana e social e uma conseqüente criação de sentido sem afirmar que é inalienável à vida, o trágico (consciência de mortalidade, de limitação, de perda, de limite, de finitude).

Por sua vez, molda seu pensamento como uma reação à psicologia e ao positivismo que esqueceu de postular a vida enquanto tal ao propor uma idealização de mundo que não abarca a amplitude de nossa existência. Para termos uma idéia mais clara do que digo, basta pegarmos o lema da bandeira nacional brasileira – Ordem e progresso – e fazer o seguinte questionamento; vivemos realmente numa nação que otimiza um progresso no bem-estar do seu povo? O que vemos no nosso país é realmente o que esperávamos? Quando nos deparamos com a situação de miserabilidade e falta de um bem-estar, tomamos a noção do quão distante estamos de comungar a tese da ordem e do progresso.

Mas o que nos interessa mesmo é entender o fio condutor da questão – o ser do homem –e para isso é necessário recorrer a um aspecto revelador da fenomenologia no seu caráter de conhecedora da realidade: a contingência. O que vem a ser precisamente esta? Uma primeira resposta, parcial, diga-se de passagem, interpreta a contingência como o mundo vivido, o exterior, sobre o qual os fatos se dão e de onde emerge o homem como corpo e consciência. Então, o ser que busca no homem pode ser entendido – não necessariamente encontrado - por suas relações situadas no feixe social, cultural ou mesmo indeterminadas isto é, construídas ao longo da existência.

Mas que homem é este que tanto procuramos e não o encontramos, senão por meio do seu corpo no mundo? Será o homem um ser real? Aliás, a que corresponde à realidade? A idéia de uma coisa, a coisa enquanto tal ou ambas são marcadas por uma correlação inextrincável? É exatamente aí que se insere o projeto de Husserl para a compreensão do universo humano, isto é a condição humana.

Para tanto, a fenomenologia se transforma numa espécie de método que faz a mediação entre o sujeito e o objeto ou, dizendo de outro modo, entre o eu e a coisa. Quando tomamos o sujeito como pólo centralizador da compreensão do mundo vivido. Assim, a fenomenologia é uma descrição da estrutura específica do fenômeno , aparecendo como condição de possibilidade do conhecimento na medida em que a consciência constitui as significações no nível da apreensão empírica ou da constituição transcendental dos objetos. De fato, o projeto fenomenológico husserliano depende de que se compreenda também como o filósofo apresenta a estrutura da consciência enquanto intencionalidade. Este conceito oriundo da filosofia medieval significa dirigir-se para, visar alguma coisa .

O que podemos dizer sobre a intencionalidade? Quando uma coisa é intencional? Quando agimos de propósito? Quando temos consciência do que fazemos? Quando queremos ou desejamos qualquer coisa que não temos? Quando percebemos a distância entre nossos sonhos e a realidade que nos cerca?

A consciência é intencional significa que “toda consciência é consciência de“. Logo, a consciência não é uma substância (alma), mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, especulação, volição, paixão, etc), com as quais visa algo. Assim, a consciência não é mais uma essência ou uma entidade, independente e abstrata, mas é seu próprio “conteúdo” que a funda. Em suas Investigações lógicas, Husserl deixava claro que “na percepção algo é percebido, na imaginação algo é imaginado, na enunciação algo é enunciado, no ódio algo é odiado, no desejo algo é desejado, etc.”. A afirmação de que a consciência não percebe no vazio, mas sempre a partir de alguma coisa corresponde a uma definição mais precisa desta como perspectiva. Perceber é ter uma intenção.

Nesse sentido, o ser do homem busca uma conexão relacional entre o que deseja e o que vive de fato. Mas sabemos que quase sempre a busca pelo o que desejamos é frustrada pela nossa desorientação diante do mundo. São tantas coisas a serem desejadas que perdemos a noção do que queremos para si. Então passamos a tomar tudo que estiver ao nosso alcance visando superar a nossa inexorável falta constitutiva, isto é, a carência, seja na ordem, da materialidade, seja na ordem da afetividade. Pois, o homem é um ser que convive constantemente com esse vazio de ser o que não é e buscar o que supostamente possa suprir essa falta. Logo, a intensidade entre o que desejamos ser e o que conseguimos ter nos conduz a uma busca sem trégua de si mesmo não como sujeito reais que assume na escolha livre a sua posição no mundo, mas como pessoa inserida num plano social-cultural seguidoras de regras próprias do sistema em que vive.

É precisamente a isso que a fenomenologia vai se contrapor. Ao tomar noção de que os problemas precisam ser vivenciados e encarados na sua realidade, ela se estabelece como método que ressalta a importância de tomar uma postura que possibilite a compreensão dos problemas, ainda que como já dito, sem a garantia de resolvê-los. O sujeito então, responsável e ciente da sua contingência, suspende ou coloca entre parênteses todo e qualquer tipo de juízo acerca daquilo que o reduz ao “ter”. Para isso, Husserl propõe a tese da redução fenomenológica que se trata de uma conversão do olhar que nos permite chegar ao objeto vivendo-o segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade.

Sem dúvida, é fundamentalmente necessário se quisermos entender porque buscamos tanto nosso ser no mundo e não o encontramos que se rejeite a imposição de qualquer sistema; para que se tenha acesso à realidade das coisas, fenômenos de modo que possa submetê-lo a si próprio.

Enquanto isso, a pergunta “o que é ser verdadeiramente homem?” permanece irrespondível, pois o homem é antes de tudo, um ser em aberto, em permanente processo de descobertas de si mesmo, do mundo e de tudo o que o cerca. Assim, a fenomenologia tece uma contribuição fundamental para este entendimento, já que por propor uma descrição direta da experiência tal como ela é; por demonstrar como a realidade é construída socialmente e entendida como o compreendido, o interpretado, o comunicado e, também, que existem tantas realidades quantas forem suas interpretações e comunicações. Todavia, estamos no limiar de um projeto que se converte na procura pelo ser do homem a cada momento, a cada acontecimento, a cada ruptura que o homem provoca nessa busca incessante pela sua existência, como um projeto incompleto e inacabado de si mesmo.

Imagem: Gilbert Garcin. Identité.]

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